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Reflexões sobre gênero, violência e sociedade

Mulheres negras: diante da ponte para o abismo

No próximo dia 20 comemora-se o Dia da Consciência Negra em um país que insiste em não se enxergar racista. Embora eu tenha alguma noção de feminismo negro e um profundo respeito por suas pautas, não sou capaz de falar sobre o assunto com a mesma propriedade de quem sente o racismo na pele. Nesse contexto, convidei a jornalista Luciana Araújo para ocupar este espaço e falar sobre as mulheres negras e os principais desafios que se colocam nesse momento. A leitura é essencial:

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Por Nana Soares
Atualização:


Mulheres negras: diante da ponte para o abismo

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Por Luciana Araújo*

Neste dia 20, mulheres, homens e jovens negras e negros de todo o país voltam às ruas para lembrar os 321 de morte de Zumbi dos Palmares. O jovem líder só foi reconhecido em 1995 como herói nacional do enfrentamento ao regime escravista no Brasil, que sequestrou 4 milhões de pessoas do continente africano para estruturar o desenvolvimento econômico do país sobre o sangue negro.

Em São Paulo haverá um bloco de mulheres na XIII Marcha da Consciência Negra, a celebrar também a memória de Dandara - liderança feminina mais proeminente do Quilombo dos Palmares - e o primeiro aniversário de outra marcha: a Marcha das Mulheres Negras, que em novembro de 2015 levou cerca de 30 mil afrodescendentes à capital federal para denunciar a construção social racista que nos coloca na base da pirâmide populacional, negando-nos historicamente direitos.

Um quarto da população e 49,9% do contingente feminino brasileiro, estamos sobrerrepresentadas em todos os indicadores sociais negativos.

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Dados do Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde publicados no Painel Observa Gênero apontam que em 2014 as negras foram 65,1% das vítimas de mortalidade materna.

Em setembro último recebemos, infelizmente não sem surpresa, a informação de que 80% das crianças nascidas com a síndrome congênita do zika vírus são filhos de mães negras. Em sua maioria mulheres que vivem sem acesso ao direito básico ao saneamento. No país, segundo o Ministério das Cidades, em 2014, 42% da população de áreas urbanas não tinham coleta de esgoto assegurada. E a exclusão social tem cor no Brasil.

O Observa Gênero também mostra que as mulheres negras receberam no ano de 2014 em média R$ 6,4 por hora trabalhada enquanto homens brancos obtiveram rendimento médio de R$ 20,2/hora. A relação direta deste dado com as possibilidades de acesso à educação, saúde e seguridade social dispensam análises rebuscadas.

Segundo o Balanço da Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180 relativo ao ano de 2015, 58,86% do total de relatos de violência registrados foram cometidos contra negras. O dado evidencia mais uma vez o impacto direto do racismo na maior exposição das mulheres negras a violações, incluindo a do direito à vida, pois somos também a maioria das vítimas de feminicídios ou assassinatos motivados pelas hierarquias sociais de gênero. E entre 2003 e 2013, segundo o Ministério da Justiça, enquanto felizmente as mortes violentas de mulheres brancas caíram quase 10 por cento, as de mulheres negras cresceram 54%. A chance de morte violenta para uma mulher negra no Brasil é quase duas vezes maior que a de mulheres brancas. As taxas de homicídio por 100 mil habitantes são, respectivamente, de 5,4 e 3,2.

Entre esses casos está a violência doméstica, mas também mortes por ações policiais, como a da jovem Luana Barbosa dos Reis. Abordada em Ribeirão Preto por um efetivo masculino e espancada até sofrer traumatismo craniano por se negar a ser revistada por homens, Luana foi a óbito cinco dias depois.

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Por isso, entre os pontos em relevo na manifestação das mulheres negras neste 20 de novembro está a rejeição à Proposta de Emenda Constitucional 55, que limita por 20 anos os investimentos sociais da União à inflação do ano anterior. Aprovada na Câmara, a propositura depende agora de votação em dois turnos no Senado. O que o governo sem voto popular tenta fazer acontecer ainda neste ano.

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Ao indeferir liminar pedida por deputados para interromper a tramitação da PEC, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso reconheceu que "por certo, há risco de setores mais vulneráveis e menos representados politicamente perderem a disputa por recursos escassos."* Somos nós, nossos corpos, nossas vidas, os mais vulneráveis entre os citados pelo ministro do STF.

O quadro do racismo institucional traçado acima tende à explosão com a estagnação orçamentária nas áreas de saúde, previdência, assistência e educação. Até porque o crescimento populacional não será magicamente estancado. A população negra é 70% dos usuários do SUS, para ficar só num exemplo. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, por exemplo, sofrerá redução do investimento no combate ao diabetes, hipertensão arterial, doença falciforme, miomas, bem como à morbimortalidade materna e infantil e ao HIV/Aids - que leva à morte três vezes mais negras que brancas na capital paulista, segundo a Secretaria Municipal de Saúde.

A possível aprovação da PEC 55, associada à reforma previdenciária que prevê aumento do tempo de serviço para mulheres ao equiparar a idade mínima para aposentadoria a 65 anos e a limitação dos benefícios previdenciários, vilipendiará ainda mais nossa cidadania.Tais propostas, que vertebram a "Ponte para o Futuro", se assentam sobre o retrocesso nos direitos sociais assegurados na Constituição Cidadã, colocando-nos frente a um verdadeiro abismo.

Em análise dos dispositivos essenciais ao chamado 'Novo Regime Fiscal', o consultor legislativo do Senado Ronaldo Jorge Araujo Vieira Júnior ressalta que o artigo 60 da Constituição Federal de 1988 coloca os direitos e garantias individuais entre as cláusulas pétreas do ordenamento jurídico brasileiro - aquelas que não podem ser submetidas a emendas. A análise consta do Boletim Legislativo 53, deste mês e é taxativa em afirmar a inconstitucionalidade da PEC.

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Por tudo isso, a sociedade brasileira deve refletir sobre a bomba relógio que nos espera do outro lado da "ponte" governamental. Tal nível de ataque social inexoravelmente levará a reações. Como outrora afirmou José Carlos Limeira, "Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo".

Luciana Araújo, 39, é jornalista formada em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e trabalha no Instituto Patrícia Galvão - Mídia e Direitos.

* Documento disponível aqui.

 Foto: Estadão
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