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Um outro olhar sobre as notícias

Ele ajudou a salvar várias vidas - e Ivana ainda será uma delas

A história de João W. Nery, que se descobriu transexual na ditadura militar e vai servir de exemplo para personagem de Glória Perez em “A Força do Querer”

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Atualização:

Quem vê João W. Nery, 67 anos, casado pela quarta vez, pai de um homem de 30 anos, avô, não imagina sua história de sofrimento e superação. Não imagina que ele nasceu Joana, que enfrentou discriminação por não ser uma menina como as outras, que desafiou as regras da Medicina para retirar as mamas e o útero, que deixou para trás a própria profissão para viver a nova identidade e que formou uma rede na internet para ajudar pessoas a encarar a barra que é assumir-se transexual.

Quando descobriu que era um homem no corpo de uma mulher, João não teve ajuda das outras pessoas nem da internet para lidar com seus sentimentos e inseguranças. Era a época da ditadura militar, pouca gente no mundo havia ouvido falar de transexualidade e não havia a internet para disseminar informações e encontrar pessoas que vivessem a mesma situação. Foi nesse contexto que pensou em escrever um livro para contar sua experiência. Em Erro de Pessoa, publicado em 1984, conta da infância até os 27 anos, quando assume definitivamente a identidade masculina. Em Viagem Solitária, de 2011, atualiza a obra incluindo a experiência como pai.

 Foto: Estadão

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É essa trajetória, com seus obstáculos e descobertas, que deve ajudar a personagem Ivana, da novela Força do Querer, a lidar com a transexualidade. Quando Glória Perez procurou João, estava decidida a contar, em sua novela, a história de um menino que se descobre menina. Depois de conhecer a obra de João, decidiu criar a personagem tão bem interpretada por Carol Duarte. Sem apoio dos pais, sem conseguir entender seus próprios sentimentos, Ivana descobre a transexualidade com a participação do homem trans T. Brant e vai aprender a lidar com ela com os escritos de João.

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Nesta entrevista ao blog, João conta como foi viver a transexualidade antes de quase todo mundo e o que mudou de lá para cá.

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Como foi descobrir a transexualidade sem ajuda da tecnologia, durante a ditadura militar?

Eu tinha uma amiga sexóloga, Naomi Vasconcelos, que tinha feito doutorado na Bélgica. Foi ela que me falou pela primeira vez na palavra trans. Eu tinha contado que não me encaixava em nada, me sentia um homem, não me sentia lésbica. Isso eu já tinha 25 anos... Eu também tinha feito uma viagem a Paris e visto sobre transexualidade, mas tudo sempre relativo a mulher trans. "O primeiro homem que virou mulher". Até hoje se usa essa maneira de dizer, mas ninguém vira nada. Você já é. A cirurgia é uma modificação corporal para se adequar ao que você se sente. Por isso que não gostamos dessa expressão "mudança de sexo".

Qual a diferença de sexo e gênero?

Sexo se refere à genitália e gênero, à identidade social. A medicina é binarista e genital, ou seja, só pode ter homem ou mulher em função de sua genitália. O gênero decorre daí. Sigmund Freud, em 1912, já dizia aquela frase terrível: "Anatomia é destino". Até hoje funciona. Mas temos todos os intersexos. Agora, por exemplo, Nova York reconheceu 31 gêneros.

Imagine uma cultura que não tivesse esse dimorfismo entre feminino e masculino, uma cultura em que o gênero fosse neutro. Se você puder brincar de carrinho sem ser menino, por que você vai querer mudar seu gênero? Por que você vai querer tirar as mamas se puder ir para a praia de sunga e de peito, sem ser atentado ao pudor, se ninguém falar nada? Essas normas de que você tem que ter uma coerência entre o corpo e a atitude... Se você tem pênis, você tem que ser homem, tem que ser masculino, ativo e heterossexual. A mulher tem que ter vagina, ser passiva e heterossexual. E as mulheres que não nascem com vagina? Não falo só de trans, mas de intersexos também. Na verdade é o gênero que faz o corpo, e não vice-versa.

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O que mudou da época de sua juventude para cá?

Tudo é diferente. Ninguém falava nem gay, era entendido. Lésbica existia a palavra, mas era meio ofensivo. Nunca se divulgava nada na mídia, em hipótese alguma. As agressões também eram veladas. Não tinha essa liberdade de chamar alguém de gay assim. Mas hoje é demais a agressão e não há leis que protejam a população LGBTQ, como existe a lei Maria da Penha e a lei contra o racismo. Quem é agredido e vai dar parte na delegacia, os policiais costumam registrar como lesão corporal, agressão verbal... Porque, se colocar a palavra homofobia, vai constar da estatística.

Joana, aos 14 anos, assume a identidade de João, aos 27. Foto: Estadão

Quando você se deu conta de que era um homem? Como sua família reagiu?

Desde os 4 anos me sinto do gênero masculino. Nunca quis ser menina, embora fosse criada num mundo feminino. Tinha três irmãs, dei sorte de ter nascido numa família de classe médica, pude estudar. Meu pai era aviador, do Partido Comunista, e foi exilado, uma de minhas irmãs também. Participávamos de todas as passeatas daquela época, a questão política nos unia. Por isso, minha sexualidade era só mais um aspecto. Tinham outros. Meu pai foi dado como morto, minha mãe recebia pensão como viúva, tive que trabalhar aos 14 anos para ajudar minha mãe... Isso tudo nos uniu mais.

Seus pais o apoiaram?

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Meus pais sempre me deram um apoio financeiro, pagaram meu plano de saúde, porque sabiam da minha condição. A barra é muito pesada. Mas, quando você tem a ajuda dos pais, que acho fundamental, tudo fica mais fácil. Não que os pais concordem, aplaudam ou se orgulhem disso, porque eles também se perdem, não sabem como conduzir... Há aqueles que não são expulsos de casa, são respeitados e aceitos de alguma maneira. Outros não são expulsos de casa, mas não são aceitos, se trancam no quarto e ficam na internet dia e noite. Alguns abandonam a escola porque não têm mais condições.

Por que decidiu escrever um novo livro sobre sua vida?

Trinta anos depois, pensei que estava na hora de atualizar minha autobiografia. Resolvi fazer uma leitura de Um Erro de Pessoa e complementar com a quarta parte, que é minha paternidade. Sou casado quatro vezes e, no meu terceiro casamento, minha mulher transou com um cara sem eu saber. Foi complicado, difícil ser traído, mas dei a volta por cima e em 24 horas decidi assumir a paternidade da criança, contanto que o pai biológico não soubesse. Ela aceitou o trato e hoje meu filho tem 30 anos.

Você tinha convívio com outras pessoas trans?Aos 30 anos, conheci a primeira pessoa trans. Ela bateu à minha porta enviada pelo cirurgião Roberto Farina. Estava com o marido e o filho, que estava doente, e queria se hospedar em casa para levar o filho ao pediatra. Só depois da publicação do livro, em 1984, é que começo a receber muitas cartas e marco um encontro com outros homens trans. Mas, até então, eu não conhecia ninguém como eu. Não tinha internet, não tinha celular...

Como você vê esse segundo livro?

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É um livro importante, tem salvado muitas vidas e ajudado muitas famílias. Estive em João Pessoa e uma senhora veio me dizer que tinha se casado por causa do meu livro. Ela tinha se apaixonado por um homem trans e estava em dúvida. Depois de ler meu livro, ela teve coragem. Já era até avó, inclusive! Tem tanta história...

Você diz que ele também salva vidas.

Hoje mesmo postei a declaração de um garoto que me emocionou. Ele me procurou alguns meses atrás, dizendo que não queria mais viver. Foi uma espécie de despedida, me agradecendo o que tinha feito por ele, mas dizendo que a família era evangélica, que ele sofria demais, não podia mais sair na rua... Ele, aos 22 anos, não queria mais viver. Eram umas 2h da manhã, eu estava com sono, mas sabia que não podia ir dormir, tinha que continuar conversando com ele. Esse foi um dos casos, teve vários. Hoje ele postou uma mensagem contando que, graças ao que eu tinha dito, ele não tinha se matado. Estava se hormonizando, estava bem. Foi muito forte.

Você diz que entrou na militância após publicar Viagem Solitária. Por que só agora?

Consultei um advogado e ele disse: pode sair do armário. Eu estava no armário para não ser preso, porque tinha cometido dois crimes. Um foi a cirurgia, que, na época em que fiz, era considerada mutilação do humano. Farina, meu cirurgião, chegou a ser condenado a dois anos por operar uma mulher trans - era um grande cirurgião plástico, famoso internacionalmente, foi um auê. Um segundo crime foi a documentação que tirei. Depois da cirurgia, como é que eu ia trabalhar, com toda a documentação feminina e uma aparência masculina? Até hoje esse é o grande problema dos trans. Mais séria do que a transformação do corpo é a documentação. Uma pessoa que não tem um documento que lhe represente, não existe. Eu ia ao cinema e pagava inteira para não ter que mostrar minha carteira de estudante. Quando o guarda me parava no trânsito, ele não acreditava que a carteira era minha. Eu era acusado de falsidade ideológica. É impossível viver assim. Não existia nome social. Hoje já existe uma determinação do Banco Central, por exemplo, para que os bancos usem o nome social, mas eles nem sempre cumprem. É uma luta. Por isso a importância do projeto de lei batizado com o meu nome que ainda está parado no Congresso, com esses parlamentares conservadores e corruptos.

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Assumir a identidade masculina trouxe prejuízos para você?

Estou desempregado até hoje, sem aposentadoria. Quando tiro meus documentos novos, digo que meu pai nunca me registrou e que preciso servir o Exército. Nos meus novos documentos, tenho 9 anos a menos. Cometo aí meu segundo crime: fico com dois CPFs, um de mulher e um de homem. Com essa nova documentação, deixo para trás todo meu histórico escolar. Como mulher, eu fazia mestrado, dava aula em três universidades, tinha consultório... Como homem, virei analfabeto, perdi tudo! Além de estar escondido, vou trabalhar como pedreiro, chofer de táxi, pintei parede, de quadro, fui massagista de shiatsu, cortador de confecção, dono de confecção quando casei com uma estilista, professor de computação para terceira idade. Cheguei a fazer o supletivo, mas no segundo grau fiquei por uma questão em química, que eu tinha horror. Isso porque eu já estava fazendo mestrado em Psicologia! Aí joguei tudo para o alto e me recusei a cumprir com essa papagaiada. Mas foi bom, me tornei uma pessoa polivalente. Sei fazer tudo dentro de uma casa.

Além da questão da documentação, qual outro problema da população trans?

O Brasil lidera a matança da população LGBTQ - o México é o segundo, com um número quatro vezes menor. E tem gente que diz: "Mas, se você for comparar com a população, que morre por causa da violência... Mas é diferente. Você morre porque é assaltado, por bala perdida, por várias coisas. Mas morrer pelo que você é, pela orientação sexual ou identidade de gênero... Você não fez nada a ninguém! E as mortes são crudelíssimas.

O Brasil acompanhou a transição de Thammy para a identidade masculina. Isso ajuda a esclarecer a população sobre a transexualidade?

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Thammy é meu amigo, conheci no programa Super Pop. Ele se definiu como lésbica. Nos bastidores, antes do programa, vestido de homem, cabelo cortado, perguntei a ele: "Por que você não faz uma mastectomia?" E ele me respondeu que morria de medo de sangue. E eu disse: "Quando ficar insuportável para você, o medo vai embora". Passou um ano, dois, e ele não aguentou mais ter peito. Ele é filho de uma mulher muito bonita, famosa como dançarina. Ele entrou nessa onda para ganhar dinheiro, mas nunca se sentiu muito mulher. Era uma mulher bonita, como eu fui, mas se sentia meio travesti. Ele ajudou a dar visibilidade à questão, é um cara famoso. 

Quando seu filho ficou sabendo que você é trans?

Aos 13 anos, contei que não era o pai biológico e era trans. A mãe conta a segunda parte: quem era esse pai. Ele não teve interesse de procurá-lo, mas eu gostaria de encontrá-lo, para agradecer o presente que ele me deu. Desde pequeno eu já preparava meu filho para a transexualidade. Tinha alguns amigos gays, amigos trans fui conhecer só depois.

 Foto: Estadão

Como foi criar um menino sendo um homem trans?

Foi muito difícil criar um homem nesse mundo machista. Primeiro porque era confundido com gay, mas não era. Eu ensinei ele a não bater: "Meu filho, se você tem uma desavença, você conversa, você dialoga". Depois eu me arrependi, porque ele entrava na porrada direto na escola e não sabia bater. Segundo, eu não gosto de futebol. Com 8 anos, meu filho me disse que ficava lendo revistinha na biblioteca na hora do recreio. Perguntei: "Por quê?" "Porque não quero jogar futebol e sou obrigado". A escola obrigava os meninos a jogar futebol e as meninas, a jogar vôlei. Depois, quando foi fazer engenharia e entrou numa classe com 58 homens, foi discriminado porque ia de camisa rosa. Na minha casa frequentava gay, todo tipo de gente, sempre aprendeu a respeitar a diversidade. Ele se tornou um homem diferente. Desenvolveu o lado feminino, chora, sabe lidar com esse lado emocional que a nossa cultura reprime no homem...

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Mulher é tão desprezada nessa cultura que, se você quer agredir um homem, você o chama de mulherzinha... Para mim, eu que deveria estar te entrevistando! Como você gosta de ser mulher nessa cultura machista?

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