Foto do(a) blog

Comportamento Adolescente e Educação

O dom das línguas

PUBLICIDADE

Foto do author Carolina  Delboni
Por Carolina Delboni
Atualização:

Para os cristãos estamos em época de Pentecostes. É a chamada "Festa do Futuro", popularmente conhecida como Festa do Divino. A data celebra "o que está por vir", o futuro. Está aí meu ponto neste texto. O que nos espera nesse caos? E qual nosso papel em tudo isso?

PUBLICIDADE

"O dom das línguas" é o presente que o Espírito Santo "entrega" quando ele desce sobre os Apóstolos e Jesus Cristo em dia de Pentecostes. A celebração, uma das mais importantes do calendário cristão, celebra o dom da comunicação que foi dado naquele dia em que o Espirito Santo desceu no cenáculo. Naquele dia, os que falavam grego entendiam os que falavam italiano, que falavam francês, que falavam português, que falavam árabe. E Jesus Cristo foi coroado pelo Espirito Santo que, simbolicamente, aparece em imagens em cima de sua cabeça.

Coroar alguém é dar a esta pessoa a possibilidade de agir com o coração. Ou governar com - e pelo - coração. Vem dai a origem da palavra em latim. Quando se coroa Jesus Cristo dá-se a ele a possibilidade de governar pelo coração e se entende que o dom das línguas que os Apóstolos recebem naquela ocasião é o dom de compreender pelo coração, pelo amor. Muito mais do que comunicar-se pelas palavras, era possível então se comunicar pelo coração. Pelo que vem de dentro, ou da alma. Esta é a simbologia maior de Pentecostes.

Na antroposofia, as crianças pequenas de jardim, também são coroadas em seus aniversários. Já parou pra se perguntar o por quê? Será por que naquele dia elas são os pequenos reis e rainhas? Um rei ou uma rainha que governe pelo coração, governa pelo altruísmo. Governa aos outros e não a si mesmo. A criança tem essa capacidade de olhar o outro com os olhos do outro. Por isso ela é coroada. Porque pode pôr-se a serviço dos outros. Ela espelha futuro. O que queremos. O que desejamos.

Então coroamos nossas crianças como simbologia. Pentecostes também nos dá a possibilidade de festejar o dom da comunicação que foi dado a todos pela descida do Espirito Santo. Mas precisamos ainda da compreensão. Porque se não nos compreendermos não existe dom da língua que nos fará nos entender. Um dos conceitos mais difundidos tanto no cristianismo quanto nas religiões monoteístas, e no budismo é o da compaixão. É o sentir junto. O compartilhar da mesma paixão, do mesmo sentimento. Para isso precisamos ter empatia. Nos colocar no lugar do outro. Se colocar em igualdade com o outro. Capacidade quase que infantil da nossa sociedade.

Publicidade

Temos como preocupação estabelecer melhores relações e comunicações com as pessoas e neste âmbito existe um movimento que virou tendência: o da "comunicação não violenta", sistematizada pelo psicólogo americano Marshall Rosenberg. Com o objetivo exclusivo de transformar conflitos em compreensões, melhorando assim as relações entre as pessoas. Está ligado a escuta empática. Neste contexto, o professor e filósofo Leandro Karnal tem uma fala muito pertinente. "A pessoa pergunta qual o signo da outra. Ela responde e você diz qual o seu signo", exemplifica. "Nós estamos sendo treinados em dar opinião, permanentemente, para os outros, independente deles quererem ou não", diz em vídeo no seu site. Leandro termina propondo que, ao menos, uma vez façamos o exercício de ouvir mais em vez de falar. "Aceitar e entender mais os outros do que retribuir com minha opinião".

Rubens Alves, o escritor, tem um texto lindo chamado "A Escutatória" em que ele chama atenção para algo que nos passa despercebido neste mundo que nos exige sempre postura para falar em publico, para nos colocarmos. Ele diz "Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil...".

Parafraseia Alberto Caeiro, personagem de Fernando Pessoa: "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma". Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer... Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...".

E se não ouvirmos uns aos outros, seremos indivíduos isolados dentro de uma sociedade. "Na evolução humana, ninguém tem o direito de sentir-se como individualidade caso não se sinta, ao mesmo tempo, membro de toda uma humanidade", escreveu Rudolf Steiner. Que a época de Pentecostes possa nos dar a possibilidade de ouvir nosso silêncio e apreciar o que o outro tem a dizer. Com o coração. Com a alma. Para comungarmos do dom da língua. Para nos compreendermos em nossas comunicações cheias de ruídos. Isso dá razão ao nosso existir, senão não seremos humanos na expressão da palavra - human being.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.