Ele tinha um quê de Bob Dilan. Ambos são poetas que cantam. Procuram, e nisso reside as suas filosofias, veicular uma visão de mundo a partir dos dilemas de suas gerações e com isso alcançam universalidade de expressão.
Ainda hoje ouço com renovado prazer a música "Paralelas" de Belchior: "Dentro do carro/Sobre o trevo/A cem por hora, ó meu amor/Só tens agora os carinhos do motor." Há medo nesses versos, o de sentir-se em solidão e ter a companhia apenas do som de uma máquina. Medo que remete a outros versos seus que têm por cenário também uma máquina, o avião: "Foi por medo de avião/Que eu segurei/Pela primeira vez a tua mão."
São assim as suas músicas, cortantes em seu impacto melódico e poético. Fazem-nos pensar e sentir.
Numa época tão pobre de ideias como a que o Brasil vive hoje, numa miséria que assola os debates sobre temas relevantes, miséria da qual não escapam intelectuais, políticos, letristas, músicos etc., ouvir Belchior ajuda a arejar a mente em meio a essa pobreza multifacetada.
"E as paralelas dos pneus n'água das ruas/São duas estradas nuas/Em que foges do que é teu." Paralelas são retas equidistantes uma da outra e sem um ponto em comum. E não é que a matemática pode ajudar as artes a ponto de fundir-se nelas? A geometria é essencial para a pintura, como mostra o cubismo de Picasso, que procura criar um espaço tridimensional numa superfície bidimensional. Preciso dizer que há algo de geométrico nesses versos de Belchior?
Leibniz disse que a música é um exercício oculto de aritmética no qual a alma não sabe que está contando. Schopenhauer disse melhor: a música é um exercício oculto de metafísica no qual o espírito não sabe que está filosofando. Belchior sabia sim que estava filosofando.
Belchior, geômetra, que me traz à memória outro autor, se não geômetra, engenheiro: João Cabral de Melo Neto. Mentes que sabiam, seja a partir da dureza de um motor ou da dureza de uma pedra, extrair poesia, necessária para dias tão pobres intelectualmente no Brasil.
Belchior, poeta-filósofo de Sobral.