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Um manual prático para desastrados

Quando o telefone toca no apartamento do assediador

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Por Gilberto Amendola
Atualização:

O telefone tocou às 3h da manhã. Simon sequer havia dormindo. Há duas semanas vem convivendo com esse terror. Ele repete pra si mesmo que não vai atender, mas já está com a mão no gancho. Alô? Do outro lado o que se ouve é uma respiração suave, quase um suspiro. Nada mais. Sem nenhuma vontade de dormir, Simon abre o computador e joga o próprio nome no Google. Pesquisa: "Simon, assédio", "Simon, denúncia" , "Simon, Elisabeth", "Simon, Lucy", "Simon, estupro"... Nada. Na verdade, apenas o de sempre: entrevistas coletivas, pré-estreias e fotos sorridentes. Outros, muito maiores do que ele, já haviam caído. A imagem perfeita era aquela das peças de dominó tombadas na sequência, depois de um peteleco na primeira peça. Talvez, e isso era só um palpite, ele fosse uma das últimas peças dessa fila. Vai que alguma coisa acontece e ele ainda consegue parar em pé. Como seria o começo do seu fim? Tinha pavor da palavra estupro. O que aconteceu naquela saída de restaurante foi a colisão de duas pessoas bêbadas. Ok, uma pessoa muito mais bêbada do que outra. Ok, uma pessoa que só tomou uma taça de vinho e outra que deve ter tomado uma garrafa e meia. Ok, uma pessoa sóbria e a outra... Na manhã seguinte, Elisabeth perguntou o que havia acontecido. Simon, que se vestia calmamente, apenas sorriu e pediu para que ela deixasse a chave na portaria. Teve os e-mails que mandou pra estagiária, a Lucy. Mas será? Foi um convite para sair. Não, foram dois, três... Na quarta vez, escreveu uma bobagem sobre sexo oral. Uma bobagem. Não, quase uma intimação. A boca dela nunca tocou o pinto dele. Mas o silêncio dela, e aquela boca impossível, rendeu à estagiária uma demissão. Ela não tinha o perfil para trabalhar com ele. Hoje, a filha adolescente de Simon tem a idade de Lucy. Simon decidiu passar um café. Um homem de pijamas passando um café não pode ser um monstro. Pode? Um homem que investe em programas sociais, investe na educação de crianças em situação de risco, que é doador do partido certo, que é uma figura pública há pelo menos 40 anos, que criou tanta coisa bonita e engraçada, que ganhou tantos prêmios, que.. Ah, teve o caso da Emília. Mas, poxa, os dois conversaram amistosamente durante semanas. Simon estava seguro de que ela estava dando mole. Uma conversa às 2h da manhã, francamente. Aí, seguro de si, ele decidiu mandar uma foto do próprio pau para ela. Além da foto, um pedido para que ela fosse até o seu apartamento AGORA. Ela não respondeu nada. Ao contrário, bloqueou Simon do Whatsapp e nunca mais deu sinal de vida. Será que Emília ainda tem a foto do pinto? Será que ela guarda como prova? Será que um dia, pela manhã, ele vai ver a foto do próprio pinto na primeira página do jornal? A foto era boa e o ângulo bastante favorável. Bom para impressionar. Antigamente seria considerada uma boa publicidade peniana. E se ele se antecipasse aos escândalos? E se ele escrevesse uma carta confessando seus escorregões (se usar a palavra escorregão vai ser a morte). Se ele escrevesse uma carta confessando seu distúrbio, sua maldita herança cultural de macho... Simon se pergunta em silêncio: tenho culpa? Ele chega a se convencer de que é uma vítima, que a sociedade está maluca, que ele não vai ser carne para alimentar tabloides ridículos, que ele é só um cara do bem que sempre foi um conquistador, um galanteador, um Casanova, um Don Juan, um simpaticão, um querido, totalmente do bem... O telefone não vai tocar. Simon se convence que é um cara legal. Tão legal que pensa em ligar ele mesmo para Elisabeth, Lucy, Emília, Lívia, Sonia, Maria... Quem sabe um jantar com todas elas, com todas elas juntas, uma noite de risos e boas lembranças. Uma noite que poderia, segundo ele, terminar em uma grande farra, com todas elas juntinhas em sua cama espaçosa, uma guerra de travesseiros, todas quase nuas batendo com o travesseiro de penas de ganso escoceses em sua careca, ninfas acrobáticas, ele rindo, elas rindo, rindo tanto que era capaz de provocar ondinhas na barriga dele, que cena bonita, bocas que se beijam, lábios que tocam corpos aleatórios, um carrossel de peitos e bundas, ele no meio, centopeia,  Simon no meio, entronizado, reizinho, paizão, homão, priapismo, carnaval, gozo, gozo, gozo... O telefone toca.

 

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