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Um manual prático para desastrados

Episódio 2: Um cometa chamado LeBron

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Por Gilberto Amendola
Atualização:

Todo homem precisa criar seus próprios rituais. Não por qualquer ardor religioso, mas por uma simples questão de organização interna. Eles funcionam como check-ins da alma, como revisões diárias da nossa falível máquina. Eu tenho dois. Um deles tem trazido sérios problemas à hidráulica do meu vaso sanitário. Antes de dormir, tenho por regra (ritual) abrir meu maço de cigarros e partir os "não fumados" em dois - atirando-os no vaso. Por exemplo, se fumei 10 cigarros ao longo do dia, jogo os outros 10 no vaso. Se fumei 15, atiro os cinco restantes. Em dias mais tensos, dias em que algum problema explode na agência ou em outro setor da minha vida, jogo 13, 14 cigarros no vaso - restolhos de um segundo maço. Assim, evito aquele cigarrinho matinal, aquele que eu costumava fumar antes do café-da-manhã, antes mesmo de sair da cama, de olhos fechados, ainda sonhando. Vocês sabem quantas pessoas já morreram por acidentes com cigarros acesos por entre os lençóis macios? Nem eu. E claro, óbvio, jogá-los no vaso é uma maneira menos traumática de diminuir o consumo e tentar não morrer de câncer no pulmão ou de algo correlato. Meu segundo ritual é muito mais singelo. Antes de sair de casa, troco a água da vasilha de um cachorro que não mora mais comigo. ... O encontro com a garota que queria se separar foi marcado para às 11h, em uma dessas livraria de rede, dessas que as pessoas frequentam muito mais para tomar café do que por amor à literatura. De vez em quando, muito raramente, vendem um livro. Um livro ruim. Em última análise, as pessoas frequentam livrarias atrás de parceiros sexuais. A garota foi rápida no celular. Não quis ouvir minha explicação. Apenas marcou o encontro e o horário. Achei cedo demais, mas não reclamei. Afinal, quem vai terminar um relacionamento é ela. Vai ser divertido. Vou rir disso. E espero que ela também. E, no mais, vai que ela é bonita. Vai que... Parei na padaria para comprar meu maço de cigarros. No lugar, uma pequena aglomeração de clientes formou-se em frente à TV. Faz um mês que não se fala em outra coisa: a chegada do cometa LeBron (batizado assim em homenagem ao astro da NBA). Segundo especialistas, trata-se de um cometa inesperado, não rastreado anteriormente, e que passará raspando por nosso planeta - isso se ele não se desviar em pouquinho e nos acertar em cheio. Crash. Provavelmente, se isso acontecer, todos os pratos serão quebrados de uma vez, nossa eleição municipal será cancelada, terminando, assim, com os devaneios de poder do Candidato e exterminando a vida na Terra. Estou quase desejando... Dá-lhe, LeBron! Quando volto para o carro, encontro o Lino encostado nele. Esfarrapado, como sempre; fedendo cachaça, como sempre; sorrindo com dentes misteriosamente brancos, como sempre. - Opa, chefia... - Novidades? - Tô seguindo uma pista, uns amigos de Perdizes disseram que um cachorro muito parecido com o seu foi visto na região... - Lembra o que eu te disse? Se for o meu, ele vai atender quando for chamado pelo nome. - Sa...sa...saze...Pô, não dava pra botar um nome de cachorro? - É Sazerac, Sazerac... - Eu sei, eu sei! Mas, olha, aquela proposta de um novo cão continua em pé. Consigo um rapidinho para o senhor. Fiz cara de 'não mesmo' e Lino entendeu o recado. - Então, qualquer coisa eu aviso. Tirei uma nota de 10 reais da carteira e dei para ele. - Espera um pouco, seu Lúcio - disse Lino, segurando meu braço com suas mãos encardidas de sujeira. - O que foi? - Tome cuidado, tá? - Com o quê? - Esse cometa. Ele está deixando as pessoas malucas. Tem muita coisa estranha acontecendo. Eu que moro na rua sei bem... Sorri para o Lino e prometi que iria me cuidar. Era o que me faltava... Sou amigo de um mendigo/detetive de cachorro/místico e sabe-se lá mais o quê. ... Segui para o encontro. Como a garota não me deu nenhuma referência física ou de vestimenta, vou ter que adivinhar quem ela é. Podia ligar no celular dela? Podia? Mas não seria tão divertido. No mais, aposto que não vai ser difícil. Quem sai de casa para se separar de alguém deve ter algum sinal reconhecível na cara ou no corpo. Não pode estar muito feliz (embora esteja); não pode também se vestir muito bem (acho que quem se separa deve ter a decência de deixar a impressão de que não é grande coisa, deixar o sujeito que tomou um pé na bunda menos deprimido) e, definitivamente, não deve usar muito perfume (esquecer o cheiro de quem se vai é fundamental para recomeçar a vida - e falo isso por experiência própria). Vai ser divertido. Vou chegar no café e tentar acertar de primeira: "Hey, é você quem está aqui para terminar o namoro?" Bingo! Agora, e se ela for bonita? E se for bonita... Minha superficialidade chega a ser comovente. Recebo uma mensagem da agência pelo WhatsApp: "Terça-Feira, reunião às 10h30, para avaliar a repercussão da propaganda eleitoral". Que saco! Essas reuniões só servem para o João Gordão dizer o quanto ele é incrível e coisa e tal. Queria que o LeBron se chocasse contra a Terra antes dessa reunião. Ao chegar na livraria, passei por uma estante inteira de livros para colorir. Minhas mãos tremiam. Eu preciso superar essa obsessão antes que algo pior aconteça. Apertei os olhos e segui o meu caminho - tentando não pensar naquelas coisas de colorir. No café, muitas mesas ocupadas: dois ou três casais; um professor de francês dando aula para duas gêmeas ruivas; uma senhora de uns 70 anos; dois amigos discutindo Proust; uma japonesa fazendo palavras cruzadas; uma morena de cabelo curtinho muito parecida com a Cecília Malan; dois mudos trocando spoilers de Game of Thrones; um desempregado matando o tempo e, espera, a Cecília Malan está sozinha... - Desculpe, você está esperando uma pessoa não está? - perguntei com a minha entonação mais simpática. Antes que a Cecília Malan cover me respondesse, um sujeito deu três toques no meu ombro esquerdo. - Algum problema? - Er... Não, não, achei que era outra pessoa. Me desculpei com o casal e, constrangido, fui me sentar em uma mesa do lado oposto da cafeteria. Como alguém que vai se separar de um namorado, do amor da vida (Ué, quem vai garantir que não?) pode chegar tão atrasada? Já estava me sentindo aliviado por terminar com uma pessoa que eu não conhecia, que não respeita horários, compromissos e que parece não ter a mínima consideração pelo futuro ex, quando percebo a senhora (aquela que aparentava ter uns 70 anos) se dirigindo à minha mesa. Ela usava uma echarpe roxa, tinha o rosto exageradamente maquiado e um ar de quem acabou de sair de uma ópera bufa ou de um filme do Fellini. - Olá, posso? - Desculpe, senhora. Eu estou esperando uma pessoa. - Eu sei. Eu sou essa pessoa... Ainda bem que eu comprei cigarros.

Continua

Trilha sonora do episódio 2:

Acompanhe o "Desculpe, Foi Engano" pelo Facebook: www.facebook.com/desculpefoiengano/

Leia o episódio 1: http://emais.estadao.com.br/blogs/desculpe-foi-engano/episodio-1-a-vida-secreta-dos-figurantes/

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