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Um manual prático para desastrados

Episódio 1: A vida secreta dos figurantes

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Foto do author Gilberto Amendola
Por Gilberto Amendola
Atualização:

O desejo secreto do equilibrista de pratos é vê-los cair. Metáforas de circo sempre me ajudaram. Agora, confesso, parecem constituir as únicas imagens capazes de explicar a minha vida. Isso mesmo: aos 40 anos, sou um equilibrista de pratos ansiando por um desastre. O primeiro já aconteceu. Acho que ouviu o primeiro prato se espatifando. Fosse minimamente razoável, terminaria esse parágrafo com uma onomatopeia: crash. (Não, não ficou bom. Nota mental: testar com um prato de verdade). Bom, os pratos começaram a sambar no arame quando ela me deixou um recado no celular. Achei aquilo tão fora de propósito. Quem ainda deixa recados de voz na caixa postal do celular? Ainda mais aquele, um recado dando conta que o nosso amor tinha acabado. Simples assim - como quem avisa que a pilha do controle remoto acabou e que já é preciso comprar outra. Eu esperava mais consideração. Não, não. Consideração é uma palavra ruim. Eu só vou esperar consideração quando bater na casa dos 60 anos. O que eu queria era algo mais cerimonioso. Queria um fim digno de ser chamado de fim. Uma briga, choro, uns gritos e, quem sabe, uns copos atirados contra a parede da minha cozinha. Ou seja, crash. Pois sim, uma separação tem que ter seus rituais... Curioso é que aquele recado não era pra mim. Não tenho namorada. Portanto, no nervoso, a moça deve ter trocado algum número e deixado a mensagem para o sujeito errado. Justo eu. Resumindo, a garota se separou de alguém que ela nunca viu. Penso que o melhor a fazer é ligar no número que apareceu aqui e desfazer o mal-entendido. Não sei como começar essa conversa, talvez com um "oi, eu sou o cara que você quebrou o coração por mensagem de voz e..."Tudo vai soar estranho. Mas é preciso ser feito. Mas, antes que eu matasse uma garota de vergonha, o celular tocou outra vez. - Alô. - Lúcio, corre aqui pra agência. É urgente. A secretária de voz áspera tinha me dado uma ordem. Eu poderia alegar que aquele era o meu sábado de folga e ignorar o chamado, mas os palavrões que pude identificar vindos do profundo fundo daquela ligação me colocaram em marcha. Minha separação inventada teria que esperar um pouco mais. Quarenta minutos depois eu estava em uma sala repleta de produtores irritadiços que me olhavam com caras de "vamos te matar". Com um estalar de dedos, João Matoso, o autodenominado "gênio do marketing político brasileiro", fez com que um vídeo começasse a rodar no maior telão da agência. Era o programa de cinco minutos do partido, aquele que deveria ir ao ar na segunda-feira antes da novela e, entre outras coisas, apresentar o candidato da sigla à Prefeitura. João parou o vídeo no momento em que 30 pessoas, 30 supostos "cidadãos comuns", rodeavam O Candidato com uma atitude de aprovação e apoio. Depois de um corte seco, estavam todos voltados para a câmera e com os punhos erguidos repetiam o nome do Candidato. - Qual o problema aqui? - perguntou João. Silêncio. - Lúcio, o senhor pode me apontar qual o problema nessa cena? Não ouvi a pergunta do gordão. A minha cabeça estava na garota que tinha me abandonado (entre aspas, tá). Ela deveria estar aliviada, achando que tirou um peso das costas. Tadinha. Daí que eu devo ligar e avisar: "Você vai ter que fazer tudo isso outra vez. Pegar a porra do celular, ligar para o número certo, respirar fundo e dizer o que você me disse de forma um pouco mais amorosa e..." Fui acordado por um grito! - Lúcio! - Errr...honestamente não sei qual é o problema. - A incompetência não tem limites - resmungou. (E eu tive ganas de dar uma voadora naquele gordo escroto, mas apenas fiquei em silêncio como se fosse uma criança tomando uma reprimenda do pai). Então, João pegou uma "caneta-laser" e foi apontando para o rosto de cada figurante: "Aqui temos: um negro jovem com pinta de cantor de MPB, um descendente de alemão bom de copo; uma lésbica ativista dos Direitos Humanos; um aposentado fã de Frank Sinatra; um chinês dono de pastelaria; um gay de classe média; um católico praticante; um boliviano dono de confecção; um corintiano de torcida organizada; um empresário rico e conservador; um espírita mesa branca; um taxista falastrão; um árabe simpático; um judeu pacifista; uma ruiva sexy; um pai de santo baiano; uma dona de casa loira e de meia idade; um budista fã dos Beatles; uma criança de óculos..." E assim ele foi indicando cada figurante daquela cena. Por último, apontou a cara de um sujeito e me perguntou: - Lúcio, o senhor que foi o responsável pelo elenco pode me dizer quem é esse? - Sim, de acordo com o perfil indicado esse é o "japonês dono de uma startup promissora e/ou funcionário destacado de uma grande empresa de tecnologia; ou seja, tipo de pessoa que o eleitor ligaria caso o próprio celular travasse ou perdesse um arquivo importante no computador". - Perfeito. Como se vê, esse é um personagem importante no contexto do nosso eleitor alvo. Então, nesse sentido, quero que alguém nessa porcaria de agência me indique qual foi o erro do imbecil do Lúcio - ao dizer isso, João aproximou a imagem dando um close enorme no japonês da TI. Houve um breve silêncio. Achei que ninguém iria se manifestar. Mas, claro, o anão do mal, o Pacheco dedo-duro, o maior "tapeteiro" daquela agência tinha que pigarrear e sentenciar. "Óbvio, não é japonês. É um chinês. Mais um..." João bateu palmas e prometeu pagar um almoço para o idiota Pacheco. Além de continuar com o esporro: - Ou seja, temos dois chineses em cena (o dono da pastelaria e o gênio da internet) e nenhum japonês. Eu quero, o eleitor quer, O Candidato quer um japonês inteligente nesse programa... Tentei me antecipar dizendo que poderia arrumar um japonês em meia hora e que depois seria só inseri-lo no vídeo, um truque simples e... João bateu na mesa e disse que não tinha truque em campanhas feitas por ele. Ele avisou que naquele momento quatro vans já estavam rodando São Paulo e recolhendo os mesmos figurantes para uma nova gravação - e que o próprio Candidato já estava a caminho. No mais, os gastos extras seriam descontados do meu salário e que ainda iria pensar sobre a renovação do meu contrato. - Agora, me arrume um japonês - gritou. Foi o que eu fiz. Liguei para o primeiro japonês que me veio à cabeça: - Akira, é urgente. Tenho um trabalho pra você. - Opa, quem eu vou precisar comer? - Você só tem que aparecer aqui na agência com roupa e cara de japonês inteligente... Em menos tempo do que eu imaginava, Akira chegou na agência - vestido exatamente como um desses "milionários ponto com" da Califórnia. - Obrigado, cara. Não sabia que você tinha uma roupa assim tão bacana - disse e dei três tapinhas no ombro do japa. - Não tinha. É do figurino do meu próximo filme... Fiz cara de nojo e limpei as mãos na minha própria jaqueta. No aquário do diretor, vi o Candidato gesticulando, verdadeiramente puto. Ter que regravar aquele trecho do programa deve ter acabado com o final de semana do cara. Percebi quando o João apontou pra mim. Certeza que o Candidato estava pedindo a minha cabeça. O João gordão não estava disposto a segurar minha bronca. Imagina se eles soubessem que o Judeu Pacifista também era um árabe... Bom, por volta das 19h, todos os figurantes estavam sorridentes ao redor do Candidato. Adoraram o Akira. O japa tinha carisma. Sempre teve. Poderia ter tido uma carreira brilhante. Na cena em que todos apareciam de punhos levantados, encaixaram o Akira do lado do Candidato. Que orgulho. Eis o mundo distópico da propaganda política, onde todos os seres que habitam esse planeta azul vivem em paz, harmonia e sorriem para um candidato a prefeito. Meu celular tocou. Era a garota com quem eu ainda precisava me separar. - Alô. - Oi. - Eu sabia que você ia me ligar de novo. Olha... - Não fala nada. - Então, eu acho que houve um... Ela me cortou rápido - parecia afobada. - Se você quiser a gente pode marcar um café. Aceitei. E acho que ouvi um prato se espatifando. Crash. Ou algo parecido com isso.

Continua

Trilha sonora do episódio 1: Wilco - Dawned On Me

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