Quem sempre estoura a champanhe no "zero" da contagem regressiva é o tio Figueiredo. Direito adquirido, diz o parente. Uma tradição naturalizada pelo tempo e pela repetição.
Ele garante que traz sorte.
Não sei de que sorte ele está falando.
Figueiredo chega com a garrafa e, ao redor dele, forma-se um círculo de taças vazias.
"10" - avisa o avô recém operado do coração.
Ninguém ouve o fiapo de voz do velho- o que justifica o fato do meu irmão bêbado repetir "10" quando já deveríamos estar no "8".
Acompanhando pela TV, a prima do interior põe ordem na contagem regressiva e chama o "7" no segundo exato em que ele aparece na tela.
No "5", otio Figueiredo começa a pressionar a rolha com o dedão. Meu cunhado se afasta com medo de ser atingido (no ano passado, a rolha foi direta e reta em direção ao seu olho esquerdo).
Eu digo "3" com receio de que alguém se perca outra vez.
O resto da contagem é feita em coro: "2", " 1" e...
Figueiredo pressiona a rolha com toda força. Vai, vai, vai...
A rolha não saiu.
A TV saiu de ar.
E ficamos todos presos em 2016.
Minha mãe começou a chorar. Figueiredo continuou forçando a rolha. Minha avó rezou em voz alta uma Ave Maria. Figueiredo continuou forçando a rolha. Eu tentei ajudar. Sugeri pegar uma faca. Mas Figueiredo ficou ofendido e pediu para que todos mantivessem a calma naquela sala.
Meu pai, irmão de Figueiredo, soltou um palavrão.
Ele deixou desaguar a mágoa que estava represada e fez um discurso sobre como o seu irmão caçula sempre foi um "fominha", "egoísta" e aquele que sempre "quis ser o centro das atenções". Falou mais: disse que aquela tradição inventada de ser o único com o direito a estourar a champanhe era ridícula e que só reforçava o quanto ele era um tremendo escroto e...
Figueiredo continuo forçando a rolha ediscursou sobre como era o único dos irmãos que tinha atitude, que se não fosse por ele a família inteira continuaria morando no meio do mato.
A prima Lurdinha pediu para que o pai quebrasse a garrafa na parede e parasse de falar. "Pelo amor de Deus, quebra essa merda logo". O desespero de Lurdinha era totalmente justificado. Ela tinha tido um ano muito difícil. Perdeu o emprego em junho e até agora nada. Além disso, todas as tentativas de engravidar tinham sido inúteis.
Figueiredo continuou forçando a rolha. E, suando, pediu para que ela não colocasse o fracasso do seu casamento nas costas dele. E que se o marido dela era um estéril inútil isso não era problema de ninguém.
Lurdinha começou a chorar. Meu cunhado protestou. Puxou Lurdinha pelo braço e disse que eles deveriam sair daquela casa.
"Vocês nunca me aceitaram nessa família, vocês todos se consideram superiores, desculpe se roubei a queridinha de vocês pra mim, desculpe se eu sou a única pessoa nesse recinto capaz de fazê-la feliz...", falou o cunhado.
"Cala a boca", respondeu Figueiredo - que ainda tentava tirar a rolha da garrafa e destampar, de vez, o ano de 2016.
"Vocês são fascistas. Isso é o que vocês são!" - rebateu o cunhado.
"Não fala assim com meu irmão, seu comunistinha de beira de piscina" - reagiu meu pai.
Por um instante, fiquei feliz por Figueiredo ter recusado uma faca.
Antes que alguém mais entrasse no embate, o avô com problemas no coração anunciou que estava passando mal.
Figueiredo continuou forçando a rolha da garrafa de champanhe.Minha mãe correu para perto do pai. A Ave Maria da minha avó ficou mais alta.
Eu peguei o celular para ligar para o número da emergência. Nada. Ninguém atendeu.
Um dos meus sobrinhos (filho do meu irmão bêbado) começou a correr pela sala. Meu irmão tentou detê-lo, mas, alcoolizado, caiu de bunda no chão.
O avô que estava passando mal deu uma risadinha.
Mais duas ou três pessoas na sala riram também.
Figueiredo forçou a rolha com o dedão e nada.
Sensação estranha essa de ficar para trás no calendário...
"Esquece isso. Vamos tomar cerveja", tentei contemporizar.
Ninguém acatou minha ideia. As tentativas de Figueiredo de tirar a rolha da garrafa foram ficando mais patéticas. O homem urrava. Fazia sons que quase só se ouvem durante o sexo entre amantes ousados. Ele estava ficando vermelho. Suava e respirava com dificuldade. Acho que todo o sangue estava se concentrando na cabeça. Ele ia explodir.
"Deve ser mais jeito do que força", lembrou a avó das Aves Marias.
Em silêncio, a família parecia concordar.
E foi assim, como quem retira uma Excalibur da pedra, sem pressionar ou fazer muita força, que Figueiredo conseguiu arrancar a rolha da garrafa de champanhe.
Com alguns minutos de atraso, estávamos livres de 2016.
Nos abraçamos.
Feliz 2017.