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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Transexualidade, ciência e legislação

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Atualização:

Ao decidir criar um sistema universal e integral de saúde os membros da assembleia constituinte não imaginavam as dificuldades que viriam pela frente - corria o ano de 1988, e provavelmente eles não imaginavam que vinte e cinco anos depois o Ministério da Saúde estaria envolvido numa polêmica sobre a realização de cirurgias de mudança de sexo. Mas esses debates são o preço a se pagar por garantir o acesso completo a algo tão subjetivo como saúde - num cenário de crescentes possibilidades tecnológicas alcançadas pela medicina, definir o que é estar saudável e oferecer todos os meios para se chegar lá torna-se uma tarefa cada vez mais complexa.

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Reduzir a idade para a realização da cirurgia de troca de sexo de 21 para 18 anos, como propõe portaria a ser publicada nessa semana pelo MS, é consequência lógica dessa interação entre as definições médicas e as legais.

A Organização Mundial da Saúde reconhece como doença o "desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto" acompanhado "em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado". Definido o transexualismo como doença, estabelece-se de imediato a obrigação legal do SUS intervir, já que constam em suas disposições gerais que "a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício".

O SUS só entrou definitivamente em ação no caso do transexualismo, no entanto, após o Conselho Federal de Medicina definir diretrizes para seu tratamento cirúrgico. E é nelas que consta que a seleção dos pacientes para cirurgia deve seguir "critérios definidos após dois anos de acompanhamento conjunto: diagnóstico médico de transexualismo; maior de 21 anos; ausência de características inapropriadas para cirurgia".

Há que se ter em mente, contudo, que o conhecimento progride. A primeira resolução do CFM, por exemplo, só autorizava a cirurgia mudança de homem para mulher em hospitais universitários, dado seu caráter experimental. Em pouco tempo a evolução da técnica modificou tal disposição. Da mesma forma, inicialmente se colocou a barreira alta, aos 21 anos, procurando evitar que as pessoas se arrependessem de transformação tão radical. Mas a experiência acumulada vem mostrando que, desde pelo menos o final da adolescência a identidade sexual já está mais bem definida na maioria das vezes, não se modificando entre os 18 e 21 anos. Assim, a redução seria justificável, podendo ser revista caso a caso pela equipe multiprofissional que compõe o tratamento.

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A essência do conhecimento científico é a mudança. Por isso, quando as leis se amparam nele, têm que estar preparadas para também mudar.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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