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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Se gritar pega ladrão até eu corro

A corrupção vem de cima para baixo ou de baixo para cima? Ela faz parte da nossa cultura. O povo imita as autoridades, que imitam o povo, que imita as autoridades. Mas uma hora alguém tem que quebrar esse círculo vicioso.

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Atualização:

Há coisa de uns vinte anos, época em que o escândalo do Collor veio à tona culminando com seu processo de impeachment, lembro de ter ouvido a frase "No Brasil, se gritar 'pega ladrão' só fica o Betinho". Para os mais novos, Herbert de Souza, conhecido como Betinho (e como "irmão do Henfil"), organizava, por aqueles tempos, uma das maiores campanhas contra a fome do país. "Quem tem fome, tem pressa", dizia. Bons tempos. Hoje tenho a sensação de que se gritarem pega ladrão, "não fica um, meu irmão", como cantava Bezerra da Silva.

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A corrupção é generalizada. As figuras de poder, com autoridade outorgada pelo povo para agir em seu nome, chafurdam num oceano de sujeira que faz o "mar de lama" dos tempos do Collor parecer um córrego. Como é possível que a corrupção não apenas persista, mas aumente tanto, a despeito da disseminada rejeição a ela? Não há quem defenda os maus-feitos, e entretanto eles se multiplicam a cada dia.

Talvez a profecia de Ruy Barbosa esteja finalmente se cumprindo. Em discurso como senador ele vaticinara: "De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto." Estaríamos todos aceitando, por fim, a corrupção, desanimados de combatê-la? As pequenas contravenções do dia-a-dia - assinar a lista de presença em nome do outro, emprestar cartão do plano de saúde, pedir nota no restaurante com valor maior - seriam as bases de uma cultura que sobe do cidadão comum e molda os políticos? Ou seriam apenas consequência da desesperança na honestidade que as pessoas sentem a ouvir tantas notícias ruins? A corrupção vem de cima para baixo ou de baixo para cima?

Um estudo publicado esse ano por pesquisadores do Brasil e da Nova Zelândia ajuda a entender melhor uma das vias dessa estrada de mão dupla. Os pesquisadores apresentavam aos voluntários situações diversas de corrupção (dar propina a um policial, fraudar apólice de seguro, pedir nota fiscal com valor maior e por aí afora), perguntando qual a chance de eles mesmos adotarem tais comportamentos. Antes, porém, mostravam uma imagem: ou fotos de políticos ou policiais sendo corrompidos, ou caricaturas do típico malandro brasileiro, ou imagens neutras. E isso fez diferença: aqueles que viram as fotos de corrupção concordaram mais com comportamentos ilegais do que os que viram imagens neutras, e os que foram expostos à malandragem, apresentavam menos condescendência com tais atos. A não ser para as pessoas que tinham forte identificação com a cultura nacional: para estas, ver o malando também aumentava também chance de cometer infrações.

Ou seja, Ruy Barbosa estava certo: ver a roubalheira geral diminui o ímpeto das pessoas em ser honestas. Corrupção de cima para baixo.

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Mas o contrário também é verdadeiro. No livro "A cabeça do brasileiro" Alberto Carlos Almeida mostra que quase 20% do brasileiros concordam com a frase "Se alguém é eleito para cargo público deve usá-lo em benefício próprio, como se fosse sua propriedade", número que chega a 40% entre os analfabetos e 31% entre quem tem até quatro anos de estudo. Ou seja, boa parte dos brasileiros acha que político tem mesmo o direito de roubar. Corrupção de baixo para cima.

Então é isso. A corrupção faz parte da nossa cultura. O povo imita as autoridades, que imitam o povo, que imita as autoridades. Mas uma hora alguém tem que quebrar esse círculo vicioso.

Aposto que não serão os políticos.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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