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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Os perigos da periculosidade

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Atualização:

[tweetmeme] Tenho aproveitado o gancho do caso de Adimar de Jesus, o serial killer de Luziânia, para discutir como é errado pedir aos psiquiatras e psicólogos que façam laudos versando sobre a reabilitação ou não de criminosos comuns.

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Identifico quatro armadilhas nesse caminho:

1) Armadilha técnica: a capacidade preditiva depende não só do profissional, mas de características da própria tarefa. Características como eventos estáticos, relacionandos a coisas, repetitivos e cujos fatores mais relevantes sejam conhecidos favorecem uma boa previsibilidade. Ora, isso é exatamente o oposto do que ocorre com comportamentos, que são dinâmicos, relacionados a pessoas, erráticos e cujos fatores mais influentes nem sempre são conhecidos (I).

2) Armadilha cognitiva: a mente humana não é preparada para lidar com fenômenos multicausais. Eventos para os quais diferentes e múltiplos elementos contribuem, com pesos diversos, são incapazes de ser adequadamente previstos. Novamente, é o caso do comportamento humano - fatores sociais, econômicos, psicológicos, educacionais, religiosos, momentâneos ou não, contribuem todos ao mesmo tempo, mas com pesos distintos, inviabilizando sua previsão. (II)

3) Armadilha estatística: os modernos métodos de previsão de risco são atuariais, ou seja, arrolam diversas variáveis e correlacionam-nas com a probabilidade do comportamento ocorrer. No caso do PCL-R, a escala de psicopatia, sabe-se que na população de prisioneiros que tem escore maior que 30 a taxa de reincidência é de 75%. Mas isso se refere a populações e não é capaz de dizer se um indivíduo em especial, por conta de um teste, irá ou não cometer novos crimes. Como disse Leibniz, "Probabilidade é grau de certeza que difere da certeza absoluta como a parte difere do todo". (III)

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4) Armadilha social: na sociedade existem as pessoas que estão na média, vivendo dentro da norma, existem os doentes psiquiátricos e, entre eles, há os "anormais": os que, sem terem transtornos mentais, agem fora da norma e podem ser um transtorno razoável para a vida coletiva. Quando psiquiatras e psicólogos se manifestam sobre criminosos sem doença mental acabam se tornando instrumentos de controle social, mais do que profissionais de saúde. Foi assim que dissidentes cubanos ou chineses eram declarados loucos e internados. (IV)

É por tudo isso que, não canso de repetir, é errado querer que profissionais de saúde estabeleçam a periculosidade de alguém. O seu papel é avaliar a presença de um transtorno mental e, se presente, sua influência sobre o entendimento e autocontrole. O que ocorre, então, se Admar de Jesus for pedófilo ou psicopata? Isso veremos no próximo post.

(I) SHANTEAU, J. (1992). Competence in experts: The role of task characteristics*1, *2 Organizational Behavior and Human Decision Processes, 53 (2), 252-266 DOI: 10.1016/0749-5978(92)90064-E (II) AYERS, I., & BLASKOVICH, J. (2010). Super Crunchers: Why Thinking-By-Numbers is the New Way to be Smart Journal of Information Systems, 24 (1) DOI: 10.2308/jis.2010.24.1.113 (III) Cooke DJ, & Michie C (2009). Limitations of Diagnostic Precision and Predictive Utility in the Individual Case: A Challenge for Forensic Practice. Law and human behavior PMID: 19277854 (IV) Maciel, L. (2001). Medicalização da sociedade ou socialização da medicina? - reflexões em torno de um conceito História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 8 (2) DOI: 10.1590/S0104-59702001000300010

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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