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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Olha quem está falando! - a corrupção nossa de cada dia

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Atualização:

O fim do julgamento do mensalão trouxe para a sociedade toda, exceto para alguns cuja visão fica embaçada pelo sorvete que escorre testa abaixo, uma sensação de certa vitória. Ricos sendo presos e políticos perdendo mandatos por conta de malfeitos é coisa praticamente inédita no país, trazendo a possibilidade de uma mudança no ambiente cultural relacionado a corrupção.

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Mas uma ponta de ceticismo me incomoda. Sim, pois a mania de burlar regras e flexibilizar as normas é tão cristalizada em nós que com certeza será necessário mais do que um julgamento midiático para nos colocar num caminho mais honesto. Não que sejamos todos um bando de ladrões, mas quanto mais banal a infração, quanto menor o ganho que um jeitinho nos traz, mais nos convencemos que essa pequena corrupção do dia-a-dia não tem nada de mais, o que dificulta seu combate efetivo. É o mecanismo clássico chamado dissonância cognitiva.

Essa estratégia mental, em grande parte inconsciente, entra em ação quando nossas opiniões não condizem com nossos atos, quando nossas crenças não batem com a realidade, quando existe, enfim, um descompasso em nossa mente. Isso faz surgir um desconforto que nos leva a mudar de opinião, de crença ou de atitude, ajustando-as aos fatos e reduzindo o mal-estar. Num dos experimentos seminais desse campo, Leon Festinger pediu que voluntários fizessem uma tarefa extremamente monótona e repetitiva durante meia hora. Ao fim desse tempo eles pediam aos sujeitos que colaborassem com a pesquisa, dizendo ao voluntário que entraria em seguida que o estudo era muito divertido e agradável. Para isso ofereceram a uma parte deles um dólar, a outra vinte dólares. Após essa etapa perguntaram quanto eles de fato achavam que a atividade tinha sido interessante, e quais as chances de participarem novamente em algo assim. A surpresa foi que os que ganharam mais dinheiro consideraram a experiência muito chata, sendo pouco provável voltarem a realizá-la, mas os que receberam só um dólar tendiam a classificar aquela entediante atividade como interessante, com grandes chances de se voluntariarem novamente. A dissonância cognitiva foi tanto maior quanto menos dinheiro receberam para mentir, e o desconforto diminuía à medida que as pessoas se sentiam bem recompensadas por enganar os colegas.

Penso que esse mesmo efeito nos atrapalha na hora de reconhecer, admitir e por fim combater a corrupção generalizada. Quando se pagam cem reais para um policial não aplicar uma multa de quinhentos, quando se compram notas fiscais para sonegar oitocentos, mil reais de impostos, quando o serviço sem nota tem 10% de desconto quer-se crer que não se está fazendo nada de mais, já que os valores são tão baixos perto dos milhões roubados no país. Mas acho que no fundo isso são só argumentos para reduzir o desconforto de se vender por pouco. Sem se convencer de que isso são bobagens teríamos que admitir que, muitas vezes, a diferença para José Dirceu, Marcos Valério ou João Paulo Cunha é apenas uma questão de preço.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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