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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Memória e esquecimento - mitos e verdades na literatura e no cinema

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Sabe todos os seus conceitos sobre como a memória funciona? Com o perdão do trocadilho, esqueça-os. Talvez não todos, mas provavelmente boa parte do que você imagina está errado. Duvida? Então diga se você concorda ou não com as quatro afirmações abaixo:

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1) Quando uma pessoa sofre de amnésia, normalmente ela não consegue se lembrar de seu nome ou sua identidade. 2) A palavra de uma testemunha honesta, que tem certeza do que viu, poderia bastar para condenar alguém judicialmente. 3) A memória humana funciona aproximadamente como uma câmera, gravando sons e imagens do que acontece para que possamos posteriormente rever na memória. 4) Uma vez que algo tenha sido gravado na memória, essa lembrança não se modifica mais.

E então, qual o escore? Com quantas você concorda? Se acredita que qualquer uma delas está certa, errou. Todos os conceitos são incorretos. Talvez o único consolo é que você não está sozinho: entrevistados 1500 americanos, de todas as camadas sociais, 82,7% das pessoas acreditavam na primeira frase, 37,1% na segunda, 63% na terceira e 47,6% na quarta. E a ficção é em grande parte culpada por isso.

Poucos sintomas neuropsiquiátricos são tão caros ao cinema e à literatura como a amnésia, mas poucos são tão distorcidos. A história típica é a de uma pessoa que leva uma pancada na cabeça, esquece de tudo, inclusive de quem ela é, e só ao levar uma segunda pancada recupera a memória. Mas na verdade traumatismos cranianos raramente produzem essa amnésia total. Ela até pode acontecer diante de traumas psíquicos, mas é raríssima. E obviamente não pode ser revertida com outra pancada. Já a ideia de que temos uma filmadora na cabeça, registrando tudo e guardando em arquivos que podemos posteriormente acessar tem grande apelo justamente pela metáfora tecnológica. Mas não é assim que funciona: quando lembramos de algo nós reconstruímos a cena. Guardamos apenas alguns elementos chave, repletos de lacunas que só são preenchidas pelo cérebro na hora de reencenar a lembrança. Por isso mesmo existem muitas distorções: o contexto em que estamos, as dicas que usamos para lembrar, as expectativas envolvidas, tudo isso influencia nessa reconstrução, podendo levar até mesmo à formação de falsas memórias.

Estive pensando nisso enquanto lia o excelente livro Antes de Dormir (Editora Record), aclamado romance de estreia de S.J. Watson. Ele também usa um conceito incorreto sobre a memória: uma mulher acorda a cada dia sem se lembrar de nada. Exatamente como a Drew Barrymore em Como se fosse a primeira vez. Mas não se trata de uma comédia romântica, e sim de um suspense tão envolvente que percorri as quatrocentas páginas em quatro dias. A criativa estrutura do livro nos coloca na perspectiva da narradora, inicialmente no dia de hoje, quando ela recupera um diário que vinha fazendo há algumas semanas. A segunda parte se constrói toda sobre o diário, que lemos junto com a protagonista descobrindo com ela o que está acontecendo. Na última parte voltamos para o dia de hoje, após terminar de ler as anotações. Só que ao longo das páginas as dúvidas foram se acumulando, pois sem ter memórias sobre as quais construir o conhecimento, ficamos, narradora e leitores, à mercê do que os outros lhe contaram e ela conseguiu escrever. Nem tudo é o que parece, e ao comparar as versões ela vai depurando a história, construindo uma trama que não nos deixa fechar o livro antes do fim. Difícil falar mais alguma coisa sem estragar as surpresas.

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Como muitas obras de ficção, esse livro abusa da liberdade poética para tecer sua história, cometendo alguns equívocos graves com relação à memória. Mas é tão bem escrito que, novamente com perdão do trocadilho, são falhas que vale a pena esquecer.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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