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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Crack - despolitizar para criar políticas

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Atualização:

As imagens mostrando o corre-corre dos usuários de crack fugindo das abordagens da prefeitura são um prato cheio tanto para os que criticam como para os que apoiam as internações compulsórias. Isso porque essa questão vem sendo abordada por dois ângulos: o daqueles que são contrários, tidos habitualmente como liberais e de esquerda; o dos favoráveis, vistos como reacionários e de direita. Mas há uma outra maneira de enxergar a situação. Para chegarmos a ela é necessário primeiro despolitizar o fulcro do problema, para posteriormente retomar o aspecto político com outra visão.

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Do ponto de vista estritamente técnico, pensando na saúde mental dos dependentes de crack que moram nas ruas é muito difícil negar que a internação contra a vontade de alguns deles seja por vezes necessária. Quando o vício se torna muito intenso o sujeito perde parcialmente sua autonomia, pois sua capacidade de não usar a droga está prejudicada (por isso mesmo a dependência é considerada uma doença, por fugir ao controle voluntário). Nos casos de uso de substâncias nem sempre é fácil distinguir quando o uso deixa de ser deliberado e passa a ser motivado pela dependência irrefreável - tanto é assim que é comuníssimo as pessoas dizerem que usam uma droga porque querem, que não desejam parar, e que quando quiserem, pararão (como ocorre com muitos fumantes). Mas quando consideramos com isenção os indivíduos que abandonaram família, emprego, amigos e foram para as ruas em função do crack, torna-se complicado negar que, para eles, a dependência química tomou totalmente conta de sua vontade, privando-os da possibilidade de se negar a usar o crack. Nesse contexto, o erro maior é não tratar dos pacientes, imaginando-se que se deva respeitar uma vontade que já não é autônoma, subjugada pela dependência.

Com isso em mente podemos voltar à política. Estabelecer ou não uma política de internações patrocinada pelo governo implica em um de dois riscos: não atuar nessas regiões, ou atuar sem a possibilidade de internações compulsórias, significa correr o risco de que esses dependentes nunca consigam sequer iniciar a abstinência das drogas, ficando sujeitos aos males da situação de rua e dependência grave. Por outro lado, a implementação de tal política traz consigo o risco de tornar os médicos e juízes instrumentos de interesses escusos dos governos, sejam econômicos, imobiliários ou quaisquer outros. Ou seja, não há saída sem riscos para situações tão graves e complexas como as das cracolândias.

Mas chega uma hora em que precisamos agir; nesse caso em particular, menos do que as inclinações políticas, deveríamos levar em conta qual risco queremos correr.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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