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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Como pudemos roubar tanto? - a desonestidade e a anestesia emocional cerebral

Roubar uma vez torna mais fácil roubar uma segunda? E uma terceira? E se é mais fácil será que roubamos mais?

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Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:

pixabay Foto: Estadão

Nos últimos dias uma mensagem falsamente atribuída ao juiz Sérgio Moro sobre a desonestidade fez sucesso na internet. Seu autor real parece ser Creuse Santos, pastor da igreja batista (é irônico que até o texto tenha sido roubado), e resumidamente ele apresenta uma escalada de desonestidade.

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"Quando você tem oportunidade de roubar R$ 0,50 tirando fotocópia pessoal na máquina Xerox do trabalho, você não perde a oportunidade. Quando você tem oportunidade de roubar R$ 5,00 levando para casa a caneta da empresa, você não perde a oportunidade."

Ao longo da mensagem as cifras vão crescendo: "Quando você tem a oportunidade de roubar R$ 2.000,00 escondendo um defeito do seu carro na hora de vendê-lo enganando o comprador, você não perde a oportunidade".

A conclusão vem por decorrência lógica, como é de se esperar. "Bom, se você trabalhasse no Governo, e caísse no seu colo a oportunidade de roubar R$ 1.000.000,00 com certeza, como você não perde uma oportunidade, iria aproveitar mais esta oportunidade. Tudo é uma questão de acesso e oportunidade".

Longe de justificar os políticos envolvidos em corrupção, o texto ressalta não existe uma espécie selvagem ou extraterrestre chamada "político brasileiro". Não. Eles são nós, e nós somos eles. Podemos negar o quanto for, mas em seu conjunto eles nos representam. Antes de inocentá-los, a mensagem nos incrimina a todos.

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Mas será verdade que existe uma escalada de desonestidade? Será que roubar uma vez torna mais fácil roubar a segunda? E se isso acontece, tenderíamos a roubar cada vez mais?

Na semana passada foram publicados os resultados de um experimento mostrando que é exatamente isso o que acontece.

Oitenta voluntários tinham que olhar a foto de uma jarra cheia de moedas e estimar quanto de dinheiro havia nela. Com seu palpite eles deveriam ajudar um parceiro a dar seu próprio chute. Aí é que os cenários variavam: às vezes se o parceiro chutasse para mais o voluntário ganharia mais dinheiro, às vezes era o inverso, e em determinados momentos o que mais compensava era a precisão. Mexendo com essas variáveis os cientistas conseguiram determinar qual a estimativa real das pessoas, verificando também o quanto elas mentiam exagerando ou subestimando os valores dependendo de seus interesses.

O resultado confirmou: quando temos chance de ganhar algo sendo desonestos, nós somos. E repetindo as interações ao longo de sessenta rodadas mostrou-se que, quando havia lucros, as pessoas roubavam um pouco mais a cada rodada.

Para esclarecer o que ia pela cabeça dos participantes, vinte e cinco fizeram o teste enquanto tinham sua atividade cerebral monitorada. Os cientistas se focaram nas amígdalas cerebrais, estruturas envolvidas em nossas reações emocionais. Notaram que se no começo elas ficavam muito ativas quando as pessoas roubavam, com o tempo reduziam sua atividade, comprovando que os sujeitos ficavam progressivamente menos incomodados. E quanto menor a atividade das amígdalas, maior a desonestidade futura.

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Resumo: roubar uma vez torna mais fácil roubar outras. E quanto mais o fazemos, mais insensíveis ficamos.

Assim, na próxima notícia que eu ler sobre um desvio milionário vou tentar não pensar "Como foi possível roubarem tanto?". Em vez disso quero me perguntar: "Quão pequeno terá sido seus primeiros roubos?".E de quebra tentarei olhar para mim mesmo. Se tiver coragem.

 

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Férias para você, não para seu cérebro

Aproveitando que se aproximam as festas e fim de ano, amigos secretos, Natal e férias, a partir dessa semana até o final do ano darei dicas de lançamentos sobre comportamento, mente, cérebro e afins. Afinal, as férias são para você, não para seu cérebro!

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Exames de Empatia

 Foto: Estadão

Poucas pessoas sabem, mas hoje em dia é comum utilizar atores simulando doenças para testar alunos nas faculdades de medicina. A escritora Leslie Jamison trabalhou como atriz em alguns desses testes, que incluíam dar uma nota para a empatia demonstrada. No ensaio que dá título ao livro ela reflete sobre o alcance e os limites dessa abordagem (e por extensão da própria empatia). O livro todo, no fundo, nos convida ao exercício da empatia por meio de uma escrita tocante e precisa. Exames de Empatia, Leslie Jamison. Editora Globo Livros, 2016.

 

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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