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Reflexões sobre um morar autêntico

Gregos e troianos

Uns de nós são afeitos às tradições e à estabilidade, enquanto outros adoram as mudanças e as transformações. Há quem goste de recolhimento e quem não viva sem compartilhar sua vida, momento a momento, com gente querida. Aqueles que são ordeiros e meticulosos, e os que sem uma certa parcela de caos em suas vidas, não encontram a energia vital para seguirem. Mas nos encarcerar em estereótipos não colabora em nada com nossas relações e, embora possamos nos pensar como tipologias estanques, tipos representativos de características puras, sabemos que somos em verdade um equilíbrio de energias e tendências interiores em arranjos próprios. Não há um só de nós que tenha uma outra cópia exata nas proporções dessas forças dentro de si. Somos únicos, em carne e espírito. É como se fôssemos feitos de matéria diferente, e me parece claro que isso se reflita em nossos lares.

Por Gustavo Calazans
Atualização:

Mas o que acontece quando um tradicionalista se une a um revolucionário, e os dois resolvem dar forma a um só lar? Ou quando alguém tocado profundamente pela necessidade de ordem e organização se depara com um parceiro cuja natureza não se importa com toalhas jogadas no chão, sapatos pela casa ou pratos não lavados sobre a pia da cozinha? E que cara esse lar deve ter para que ambos se sintam por ele representados e nele acolhidos?

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Além de toda a negociação que provavelmente se fará necessária para encontrarmos harmonia nesses encontros tão diversos, o que me deixa curioso é mesmo saber como o espaço físico e as suas características podem nos ajudar a neutralizar os possíveis conflitos que aparecerão e, por outro lado, como cada um poderá conquistar seu território sem desrespeitar - demais - o do outro.

Lembrando que no mundo atual não apenas tempo, mas espaço também é dinheiro, pensar em possibilidades de coexistirmos de forma 'esperta' é fundamental. Desde ter espaços multiuso que possam se adequar às diversas necessidades e, dessa forma, permitir que com poucos espaços tenhamos muitas atividades cotidianas atendidas, até termos formas de compartimentar e integrar espaços para que esses funcionem para ocasiões onde precisamos de privacidade, ou para quando queremos interação. Esse é um desafio e tanto quando a metragem dos imóveis tem chegado a limites mínimos, nunca dantes imaginados. A miniaturização das casas seja, talvez, inversamente proporcional à possibilidade de sucesso das relações.

Manter uma vida razoavelmente organizada já é uma aventura que, quando somada à redução dos espaços, se torna uma missão quase impossível. Banheiros tão pequenos onde não é possível termos toalhas penduradas para que sequem - e me parece que a tradição cultural atual ainda sugere que um banho diário seja bem-vindo. Cada vez menos armários, enquanto a sociedade chafurda numa escalada consumista sem limites. Nesse contexto, sofrem aqueles que querem manter-se organizados, mas também os que não conseguem se organizar diante dos excessos e reduções tão impactantes. E o desafio das diferenças que me coloquei no início dessa reflexão quase que fica simples, não fosse ele tão afetado por todas essas transformações.

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Espaços cada vez menores e a dificuldade de coexistirmos em cubículos. foto: Gustavo Calazans Foto: Estadão

Se a subdivisão dos imóveis em espaços e a sua sapiência são importantes para garantir a saúde das relações, quando pensamos na apropriação dos espaços, na sua caracterização e personalização, a equação se eleva de grau, exponencialmente. Saímos da esfera das necessidades práticas e entramos no terreno quase insondável das fantasias e histórias pessoais. Escutei nessa semana que, quando vamos para a cama com alguém, não estamos sozinhos, mas sim acompanhados pelos nossos pais, avós, bisavós, etc. Todos carregamos na vida uma turma enorme e animada, que nos faz acreditar em tantas das nossas crenças, gostar do que gostamos e ver beleza naquilo que achamos belo. E isso é tão construído e, ao mesmo tempo, tão difícil de descontruir.

Uma provocação aqui para todos nós, eu incluso. Será que não são os cavalos de batalha travados nas relações que nos fazem abrir mão de uma parcela dessas heranças, o que permite que os ordeiros aceitem certos graus de desordem, assim como faça os desorganizados um pouco mais afeitos às coisas em seus devidos lugares?

 

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