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Opinião|Uma certa justiça

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Depois de 32 anos de anonimato, o grande momento.

 Foto: Estadão

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(Foto: Pixabay)

Quando olhou o camarim reservado só pra ele, lacrimejou. Uvas, maçãs vermelhíssimas, pães artesanais, queijos diversos, grãos importados do Líbano, a garrafa de Veuve Clicquot no gelo, água San Pellegrino. Tudo colocado harmoniosamente sobre uma mesa com toalha de renda branca. E flores. Muitas flores.

Depois de 32 anos de anonimato, esnobação dos críticos e completa inexistência na lembrança da mídia gorda, aquilo era a prova de que havia uma certa justiça "nesse mundo de meu Deus".

Numa algaravia, os auxiliares do Canecão perguntavam coisas sobre a tonalidade da mesa de som, sobre o roteiro, os convidados vip, as canjas. Mas seus ouvidos não acompanhavam mais nada do que vinha de fora. Só as orelhas de dentro funcionavam agora. As orelhas e os olhos internos.

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Lembrava-se com grande clareza de seu longo calvário. As temporadas no circuito alternativo da Zona Norte e da Zona Leste de São Paulo. Muitas vezes tocando sem cachê algum, apenas para tentar imprimir suas ideias revolucionárias a um grupo pequeno, mas interessado no novo.

Depois, o empresário que embolsou a grana de seu primeiro grande show num Sesc da periferia. Com o dinheiro desviado, o mau caráter viabilizou a gravação dos discos de quatro duplas caipiras. E, com o estouro de um desses duos breganejos, montou um selo e uma rádio em São José do Rio Preto.

Por outro lado, não havia meio de o trabalho dele decolar, parecia uma sina. Quanto mais tentava divulgá-lo, buscar pacientemente espaços, mais era esquecido pelos que controlavam as programações de rádio e tevê.

E o período mais negro ainda estava por vir. Cansada do fracasso e da deprê generalizada, a companheira de duas décadas o trocou pelo organista de uma igreja pentecostal de Belém do Pará. E ainda meteu-lhe uma ação na Justiça de não pagamento de pensão que o fez perder seu único bem: um Fiat Elba 1982 que herdara do avô.

Teve que se apresentar em saunas gays por cinco anos para conseguir honrar o parcelamento da dívida. Nos cartazes promocionais de seu pocket show homoerótico - na foto, ele aparecia vestido de Cleópatra ao lado de um negro musculoso e nu da cintura para baixo - era aclamado como "Cléo, o menestrel do povo entendido".

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Calamidade maior nem Paulo Coelho teve durante seu período de sexo, drogas e pacto com o demônio. Nunca mais pôde ouvir o refrão I will survive impunemente.

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Entretanto, a partir daquele show glorioso no Rio, tudo se repararia.

O acaso começava a jogar a favor. Então, como explicar o episódio de sua descoberta? Certa madrugada, com insônia e entediada num quarto de hotel em Londres, Marisa Monte resolveu fuçar no Google. Acidentalmente, acabou fazendo download de uma das canções dele. E, em seguida, baixou-a direto para o smartphone.

Dali para a apresentação do "genial músico da vanguarda de São Paulo" à sua turma de músicos foi um passo. Um assistente avisou que faltavam dois minutos para o início do show. E que estavam na primeira fila Chico Buarque, Carlinhos Brown, Lenine, Maria Rita, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Titãs, Gil, Caetano, a Velha Guarda da Portela inteira. E, claro, a sua madrinha, Marisa Monte.

Fez uma pequena prece, memorizou o repertório. E uma última imagem veio à sua mente. Ele saindo do teatro da prefeitura de Itaquera, com uma craviola às costas, depois de fazer um show em que não houvera nenhum pagante.

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Ouvindo o ruído dos primeiros aplausos da noite, ergueu-se, dirigindo-se altivo à boca do palco.

Nesse instante, o asteróide de 97 quilômetros de largura por 42 de comprimento precipitou-se sobre a Baía de Guanabara.

PS: Não costumo publicar textos dos meus livros aqui. Mas este, do Clássicos de mim mesmo, foi impossível não publicar no dia de hoje.

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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