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Opinião|Turismo de reconciliação

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Foto do author Carlos Castelo
Atualização:

O casamento estava no bico do corvo. Nelly e Joel tentaram então a última cartada:

fazer a viagem dos sonhos adiada desde sempre.

Nelly pensou no Taiti. Mas Joel a convenceu de que os Himalaias

contemplavam todos os desejos do casal.

Se não conseguissem acertar os ponteiros ali, vendo a montanha Fish-Tail,

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a quase 9 mil metros de altitude, não haveria mais

salvação para a lavoura que haviam plantado e colhido juntos.

Decisão tomada passaram a procurar as melhores opções

para chegar ao Teto do Mundo.

Não foi tão simples achar um roteiro razoável.

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Nem toda agência de turismo se aventura a promover certas aventuras.

Mas Joel, muito empenhado em salvar seu núcleo da derrocada, acabou

descobrindo uma pequena empresa

que fazia o circuito clássico para os não-montanhistas.

Eram três noites subindo o vale do Annapurna e dois descendo,

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na companhia de sherpas treinados no Nepal.

Quinze dias depois estavam na base do desfiladeiro,

iniciando a caminhada rumo à regeneração.

Nelly se maravilhava com qualquer coisa. Joel fotografava

o idílio e jogava no Instagram com grata satisfação.

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E foram caminhando, caminhando. E nos dias seguintes subindo, subindo.

Tudo ao beijos, abraços e cafunés.

O último riso de Nelly aconteceu quando os primeiros flocos

de neve lhe caíram sobre as faces.

Apesar disso, Joel registrou prontamente

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a expressão dúbia em sua câmera digital.

O cansaço físico começava a minar forças. E alguns sinais de desalento

apareciam em Nelly, conforme a altitude aumentava.

Foi assim quando o grupo chegou ao acampamento uma noite.

Enregelada, despenteada e descadeirada, Nelly

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viu sobre a mesa tosca do jantar sardinha em lata

e couve flor cozida em água salgada.

Ao ser servida pelo gentil sherpa, abraçou-se ao prato e começou a chorar.

Meio bêbado de rocsy, a pinga de arroz dos Himalaias,

Joel fez uma sequência de fotos de Nelly com as sardinhas

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ao molho grudadas no casaco. Achou que ela estava se divertindo.

Dormiram em tendas separadas.

De manhã, Nelly acordou com o corpo inteiro travado.

O líder do grupo sugeriu que ela ficasse na barraca, em repouso por um dia.

Os outros seguiriam montanha acima. No raiar do dia seguinte,

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dois sherpas iriam escoltá-la bem devagar pelo caminhado nevado.

E então, durante o almoço, todos se encontrariam no topo.

Assim foi feito.

Dia seguinte, hora combinada, Joel estava ansiosíssimo.

Empunhou a câmera e ficou de pé na picada esperando a esposa chegar.

Arfava.

Nelly e dois sherpas apontaram ao longe na estrada. Eram três pontinhos negros

no meio da nevasca.

Joel berrou de onde estava, a mais de 500 metros da esposa.

- Amooooor? Como está se sentiiiindo?

- Que horas sããão, Joeeeeel?

Era Nelly, berrando, o que provocava um grande eco.

- Meia-diaaaaa, amooooor!

- Que horas eu sai daquele acampamentoooo, Joeeeel?

- Quatro horas da manhãããã, meu beeeem!

- São quantas horas andando no geeeeelo, Joeeeeel?

- Oitooooo horaaasssss, amoooor!

- Oito horaassss?

- Issoooo: oito horaasss!!

- Joeeel?

- Digaaaa, meu benzinhoooo!

- Joeeeeel!!!

- Fale, tô ouviiindo, queridaaaaaaa!!!

- Joeeel, vai à merdaaaaaaaaaaa!!!!!!

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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