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Opinião|Sobre condimentos e paronomásias

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Trocadilho não costuma falhar.

 Foto: Estadão

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Deve ter sido ali pelos idos de 1989. Eu estava recém-entrado na publicidade, vindo das redações de jornal. Talvez ainda estivesse me ambientando aos chamados tons e maneiras da atividade. Começara bem. Com nove meses de profissão escrevi alguns roteiros para a cola Araldite que renderam à Standard dois leões no Festival de Cannes: um de ouro, outro de bronze. Nada mal para quem tinha pouco menos de dois anos de experiência profissional.

Passada a euforia voltamos ao dia a dia da agência. O diretor de criação me chamou na sala e passou um job. Era um anúncio para a revista Veja da nova mostarda Cica, a única com bico dosador. Ou seja, o molho saia fácil, nunca falhava.

-  Trabalhinho moleza, hein? - brincou o diretor.

Peguei a embalagem, olhei com cuidado e não resisti a cometer a paronomásia (o trocadilho dos eruditos):

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- Mostarda, mas não falha.

Já ia saindo da sala do chefe quando ouvi a gargalhada dele, em delay. Julguei que ele se ria de alguma coisa que lhe diziam ao telefone, mas era do meu trocadilho infame.

- Volta aqui! - ordenou ele.

Acreditei que seria demitido, mas ele pediu com uma calma estranha:

- Fala de novo.

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- Fala, o quê? - perguntei, sem compreender bem o pedido.

- O título! - disse, ainda rindo muito.

- Mostarda, mas não falha.

Ele começou a ter uma crise de riso ainda mais violenta que a primeira. Ia ficando vermelho, tossia, batia com os punhos na mesa. Provavelmente seria minha última intervenção na propaganda, já dava para sacar. Fôra fazer a brincadeira de cometer trocadalhos na cara do superior hierárquico, agora era esperar pelo pior. Após a risadaria era evidente, como a luz do sol: sobreviria o siso, o sermão e o RH.

Instantes mais tarde, o diretor enxugou as lágrimas com um lenço de papel e declarou:

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- Mostarda, mas não falha! É esse o título. Manda layoutar, vou apresentar para o freguês.

E, dia depois, saiu na Veja nacional. De todas as centenas de peças que criei para a Propaganda, de todas as premiações nacionais e internacionais que recebi ao longo de 29 anos de atividade, o "mostarda, mas não falha da Cica" é, de longe, a mais lembrada. Um considerável contigente amou, outro grande odiou. Mesmo assim é comentado até hoje.

É claro que nunca defenderei trocadilhos, muito menos na era do video-case. Quem adorava usar essas polêmicas figuras de linguagem eram tipos como Joyce ou Balzac. Eu sou apenas um redator latino-americano, sem dinheiro no banco, e vindo do Piauí.

Mas que elas não falham, não falham. As embalagens de mostarda, em pleno 2018, estão aí para não me deixar mentir.

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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