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Self-service de humor

Opinião|Está tudo perdoado

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Atualização:

Não sei se esta mensagem chegará até vocês. O lugar não tem coisas básicas como wi-fi, correio eletrônico ou TV por assinatura. E parece que ninguém toma pastis por aqui. Contudo, um hierarca me garantiu que tudo o que eu escrevesse chegaria ao destino.

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Talvez o que direi vá chocar um pouco (chocar é a minha profissão, aliás). É que, apesar de minha posição absolutamente ateia e anticlerical, admito estar no céu.

Logo após a invasão na redação do Charlie notei uma luz cor-de-rosa muito intensa, suei frio e tudo se apagou. Não sei quanto tempo depois me vi sob as nuvens. Imperava um silêncio intenso, só que não era somente um vazio de sons, uma pausa qualquer; tratava-se do início ou o fim de tudo. Devo ter ficado em tal estado por segundos ou séculos, não saberia precisar. Foi quando uma voz sussurrou docemente em meu ouvido:

- Monsieur Wolinski há um estúdio para desenho de cartuns e charges à sua disposição. Por favor, me acompanhe.

Era um anjo. Lembrava a Scarlett Johansson, só que com uma bunda mais arrebitada. Passamos por outros seres de luz e por diversos hierarcas. O silêncio havia sido substituído por rock'n'roll a todo volume. Logo notei que aquelas figuras não eram nada angelicais como se aprende nos catecismos cristãos. Estava um tal de anjo com anjo que o local parecia mais um "bas-fond" parisiense do que propriamente o Firmamento.

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Fiquei ainda mais surpreso ao entrar no estúdio a mim destinado. Era de primeira. Nele havia um armário imenso com centenas de lápis Caran d'Ache e uma prancheta de arquiteto novinha em folha. O anjo se foi naquela quietude que só os querubins têm e eu, sem ter o que fazer, comecei a desenhar a putaria franciscana que acabara de presenciar.

Com a eternidade à disposição devo ter passado semanas lapidando a charge, tanto que ela acabou virando um mural maior que Guernica. Os serafins entravam no ateliê e apreciavam o meu ofício mudos. No dia em que dei por finalizada a obra, uma espécie de santo mais graduado, trajando uma roupa dourada, veio até mim.

- Monsieur Wolinski, a Grande Entidade quer conhecer sua charge. Podemos agendar uma visita?

- Peraí, Deus? Mon Dieu! - exclamei, ironicamente. Pode ser a qualquer hora...

No dia seguinte adentra em meu escritório a mulher mais linda que já pousei os olhos nos últimos 80 anos. Chamá-la de Grande Entidade era pouco. Trajava um costume de seda transparente e o decote era maior que a minha, até então, descrença. Depois de dar um volteio na sala, que fez meus olhos girarem 180 graus, Ela falou a respeito do meu desenho:

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- Seu estilo é extremante agressivo, virulento e quase pornográfico. Mas aqui ninguém vai se sentir ofendido com ele. No matriarcado celeste impera o que os lá da Terra não conseguiram implementar: a anarquia. Bienvenue, monsieur Wolinski!

O santo dourado trouxe dois copos com pastis e brindei com a Grande Entidade na frente da charge.

Sexo livre, matriarcado, liberdade total de expressão, pastis: virei fanático religioso na hora.

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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