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Opinião|A última editora

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Atualização:

Estou aqui fazendo hora pra deixar a minha mesa. Não é por menos, eu venho me sentar nela há uns 25 anos.

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Comecei numa outra bem mais simples, de fórmica, na parte debaixo do sobrado. Entrei como revisor. Nunca me esqueço o primeiro livro em que trabalhei: "Contos Avulsos", do António Alcântara Machado. Livrinho cheio de graça, telegráfico, bom de leitura. Fiquei no setor por sete anos. Depois acharam que eu dava pra coisa diferente e me promoveram a editor júnior.

Minha estreia aqui não foi com obra de vulto, mas aprendi bastante lançando as primeiras coleções de livros infantis da casa. Teve os grandes clássicos para crianças adaptados à realidade brasileira. Caramba, aquilo foi um sucesso. Branca de Neve e os Sete Anões vivida por uma mendiga e sete menores abandonados bombou. Deu até nos mais vendidos de Veja. Fiz também um Pinóquio pra essa série. Só que na história, em vez de madeira, ele era todinho de borracha. Foi um dos primeiros livros patrocinados do país, a Associação dos Produtores de Látex bancou a edição. Com o tempo foram me passando material adulto.

Traduzi um Dostoiévski menor, do francês. que passou despercebido. Depois um de contos, do também russo Isaac Bábel (esse não pagou nem investimento e só se acha em sebos). Mas livro sempre traz uma coisa positiva, mesmo quando a editora fica no negativo. Não é que o Rubem Fonseca um dia me liga bem aqui nessa mesa só pra dizer que tinha gostado da tradução? Juro por Deus! Quase cai da cadeira. Eu já tinha ouvido falar que ele pagava pau pro soviético, mencionou em romance, os cambaus. Mas a ponto de ligar pra um editor pleno (é, eu já tinha sido promovido) de uma editora paulistana de porte médio, bom, aí é muita sorte mesmo.

O dono ficou sabendo do telefonema e promoveu uma série de palestras sobre o Bábel no jardim da editora. Um sarau, com uma dinâmica divertida, bebidinhas, comidinhas. O Rubem, recluso como é, foi convidado e não compareceu. Mas teve um boca a boca e passamos a ser vistos como especialistas em autores alternativos estrangeiros. Rendeu matéria na Caderno 2, Cult, Rascunho. Período de ouro. Até fiquei sócio daqui na época. Toquei várias novas coleções, fui para Moscou, trouxe críticos de Literatura das universidades de lá pra palestrar. E chegamos mesmo a levar alguns jovens autores brasileiros para assistirem master-classes em Odessa e São Petesburgo.

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Infelizmente começou o período da estagflação na Argentina e, sabe como é, logo em seguida a coisa bateu por essas bandas. Justo quando íamos investir em literatura brasileira contemporânea, maldita lei de Murphy...

Eu tinha acreditado piamente que não perderíamos mais a marca de maiores conhecedores de literatura do Leste Europeu e estoquei livros da editora em excesso. Tem até hoje brochuras do Tolstói, em capa dura e papel paraná, em armazéns alugados por aí. Pra piorar os e-books piratas vieram pra ficar. O livro em papel perdeu valor, fiquei sozinho na sociedade e deu-se o revés.

Estou aqui fazendo hora, escrevendo pra mim mesmo, pra criar coragem de sair fora. Vai ser duro depois de tanto tempo puxar o freio de mão. Mas não tem muita saída. É jogar essa folha A4 sem sentido na lixeirinha e, como dizia o Harold Pinter, "ficar chupando o escuro".E, claro, antes preciso abrir a porta pro pessoal do pet shop começar a acomodar a mudança deles no imóvel da editora.

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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